SOBRE PRÍNCIPES E SAPOS - O QUE É A PSICANÁLISE?
Muitos e muitos anos atrás, antes do asfalto,
quando a rodovia Fernão Dias ou era um mar de pó ou um mar de lama, as viagens
eram aventuras. Eu morava no interior de Minas e o jeito de vir a Campinas para
ver a namorada era arranjar carona em algum caminhão. Pois foi numa dessas
vezes que o motorista, delicadamente, para início de uma conversa que prometia
ser muito longa, me perguntou: ‘’E o que é que você faz?’’. Eu poderia ter dito
simplesmente: ‘’Sou professor’’. Isso ele entenderia perfeitamente, pois já
havia frequentado escolas, sabia muitas coisas sobre professores, e passaria
então a contar de suas proezas na aritmética e suas dificuldades com a língua
pátria. Mas eu, inexperiente e tolo, e para dar um ar de importância, respondi:
‘’Sou professor de filosofia...’’. O rosto do motorista se iluminou num largo
sorriso. ‘’Até que enfim’’, ele disse. ‘’Faz anos que eu quero saber o que é
filosofia e até hoje não encontrei ninguém que me explique. Mas hoje tenho a
sorte de ter um professor de filosofia como companheiro de viagem. Hoje vou ter
a explicação. Afinal de contas, o que é filosofia?’’.
Não tenho memória alguma do que lhe disse como
inútil explicação. Mas o seu sorriso me volta sempre que revelo a alguém que sou
psicanalista. Porque inevitavelmente vem a mesma pergunta: ‘’E o que é
psicanálise?’’. Os mais sabidos, que já ouviram ou leram sobre o assunto,
dispensam introduções e vão logo ao exame de posições: ‘’E qual é a linha que o
senhor segue?’’ – me dá logo vontade de dizer que prefiro as curvas às retas –
no que não estaria sendo infiel ao espírito da psicanálise, onde a curva é
sempre o caminho mais curto entre dois pontos. Mas sei que não entenderiam,
pois o que querem saber é se sou freudiano, kleiniano, bioniano, jungiano,
lacaniano etc. etc. Acontece que esse não é o meu jeito. Preferindo as curvas
às retas, sigo o conselho de Guimarães Rosa: só dou respostas para perguntas
que ninguém nunca perguntou. E assim, meio num estilo oriental, meio num estilo
evangélico, conto uma estória:
Era uma vez um príncipe de voz maravilhosa que
encantava todas as criaturas que o ouviam. Seu canto era tão belo que seduziu
até a bruxa que morava na floresta negra e que por ele também se apaixonou.
Mas, diferente de todos os outros, que se sentiam felizes só de ouvir, ela
resolveu cantar também. Que lindo dueto faremos, ela pensou. E logo se pôs a
cantar. Acontece, entretanto, que bruxas não conseguem cantar afinado. Bastava
que ela abrisse a boca para que dela saíssem os sons mais bizarros, que soavam
como o coaxar de sapos e rãs. A vaia foi geral. A bruxa se encheu de uma inveja
raivosa e lançou contra ele o mais terrível dos feitiços: Se não posso cantar
como você canta, farei com que você cante como eu canto. E o príncipe foi
transformado num sapo. Envergonhado de sua nova forma, ele fugiu e se escondeu
no fundo da lagoa, onde moravam os sapos e rãs. Ele ficou em tudo parecido aos
batráquios. Menos numa coisa. Continuou a cantar tão bonito quanto sempre
cantara. Mas desta vez quem não gostou do canto do novo sapo foram os sapos e
as rãs que só sabiam coaxar. O canto novo soava aos seus ouvidos como coisa de
outro mundo, que perturbava a concordância de sua monotonia sapal. Severos,
advertiram: Quem mora com rãs e sapos tem de coaxar como rãs e sapos. O príncipe-sapo
fez cessar o seu canto e não teve alternativas: teve de aprender a coaxar como
todos os outros faziam. E tanto repetiu que acabou por se esquecer das canções
de outrora. Não, não se esqueceu não... Porque, quando dormia, ele se lembrava
e ouvia a música antiga proibida que continuava a se cantar dentro dele. Mas
quando ele acordava, se esquecia. Mas não de tudo. Ficava numa saudade
indefinível. Saudade, ele não sabia bem de quê. Saudade que lhe dizia que ele
estava longe, muito longe do lar...
Esse é o resumo da psicanálise, tal como eu a
entendo. É uma estória em que se misturam o amor, a beleza e o feitiço do
esquecimento. Decepcionaram-se? Esperavam nomes famosos, conceitos complicados
– e ao invés disso eu conto uma estória de fadas. Palavras para fazer as
crianças dormirem, dirão. Mas eu acrescento: É para fazer os adultos
acordarem... A psicanálise é uma luta para quebrar o feitiço da palavra má que
nos fez adormecer e esquecer a melodia bela. É um ouvir atento de uma canção
que só se ouve no intervalo do silêncio do coaxar dos sapos, e que nos chega
como pequenos e fugazes fragmentos desconexos. É uma batalha para nos fazer
retornar ao nosso destino, inscrito nas funduras do mar da alma.
Li os clássicos. Mas foi pela palavra dos
anônimos contadores de estórias de encantamento e no encantamento da palavra
dos poetas que a letra morta ficou coisa viva. Melhor do que eu, diz esses
segredos do corpo e da alma Fernando Pessoa. Leia estes versos. Mas leia
devagar. Leia de novo. É do nosso mistério que ele fala. É o nosso mistério que
ele invoca:
Cessa
o teu canto!
Cessa,
que, enquanto o ouvi,
ouvia
uma outra voz
como
que vindo nos interstícios
do
brando encanto
com
que o teu canto vinha até nós.
Ouvi-te
e ouvi-a
no
mesmo tempo e diferentes
juntas
a cantar.
E
a melodia que não havia se agora a lembro faz-me chorar.
E ele pergunta:
Foi
tua voz encantamento que,
sem
querer, nesse momento
vago
acordou um ser qualquer alheio a nós que nos falou?
Será isto? Em nós mora um outro? Nos
interstícios do coaxar, uma canção? Que outro é este?
Que
anjo, ao ergueres a tua voz,
sem
o saberes,
veio
baixar sobre esta terra onde a alma erra,
e
com as asas soprou as brasas de ignoto lar?
Mora em nós um outro que não se
esquece da nossa verdade...
Alguns pensam que psicanálise e poesia são
coisas de loucos. Tem até o ditado: De poeta e de louco todo mundo tem um
pouco. Os sapos e rãs, ao ouvirem as canções do príncipe poeta, só poderiam ter
dito: É poeta! É louco! E trataram de curá-lo, educando-o para a realidade.
Para eles ser normal é coaxar como todos coaxam. Mas a alma, em meio à ruidosa
monotonia da vida, continua a ouvir uma voz que vem nos intervalos. Continua a
chorar ao ouvir uma melodia que não havia. Continua a ouvir a fala de um
estranho que mora em nós, e que nos visita nos sonhos.
Continua a ser queimada pelas brasas da
saudade de um lar esquecido, do qual estamos exilados.
É bem possível que os sapos e as rãs vivam
mais tranquilos. Para eles todas as questões já estão resolvidas.
Mas existe uma felicidade que só mora na
beleza. E esta a gente só encontra na melodia que soa, esquecida e reprimida,
no fundo da alma.
Autor:
Rubem Alves (do livro Palavras para Desatar Nós).
Charles
José – Psicólogo Clínico e Psicanalista.
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